sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

«Adiamento», de Álvaro de Campos

(Salvador Dalí)


Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
                                         Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...  



«Princesa prometida», por Aldina Duarte

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Jô Soares, na Casa Fernando Pessoa, não quer «acordar o gigante adormecido»



  Jô Soares esteve ontem na Casa Fernando Pessoa, não para dizer poesia de Pessoa, porque não queria «acordar o gigante adormecido» (não esteve para isso, obviamente), mas para falar com os jornalistas e anunciar o próximo espectáculo no Teatro Villaret.
  Falou das diferenças entreo português do Brasil e o português de Portugal (sabia que «pico no cu» significa injecção nas nádegas?) e sobretudo do enorme interesse do Brasil e de si próprio pelo poeta português Fernando Pessoa. Disse que o interesse por Pessoa é mágico e isso talvez tenha a ver com o ocultismo (eu já tinha suspeitado!).
 Para Jô, o verso ou frase mais importante de Pessoa é «malhas que o império tece» do poema O menino de sua mãe, porque considera uma frase do mundo, eterna, tudo são malhas que o império tece (depende do império!). 
 Não, não considera Drummond de Andrade melhor que F. Pessoa - eu também não!
  Sobre si próprio diz que tem uma maneira de ser muito existencial, as coisas, para ele, vão acontecendo - portanto, não tem nada de especial para ver ou fazer em Lisboa. (Gostei!)


Portugueses e brasileiros são "unidos por uma língua completamente diferente" - Sociedade - PUBLICO.PT

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

La Musica, de Marguerite Duras e os equívocos da vida conjugal


 La Musica, de Marguerite Duras, com a encenação de Solveig Nordlung, é uma peça de curta duração - uma hora apenas -, mas incisiva e profunda como é qualquer obra da autora.
 Num hotel em reconstrução (os espectadores interrogam-se inicialmente sobre o que andarão aqueles dois operários com fatos de macaco salpicados de tintas por ali a fazer, e uma caixa de ferramentas inusitada sobre a mesa da sala...), um homem e uma mulher, divorciados legalmente ao fim de dois anos de separação, falam sobre os equívocos que, enquanto estiveram casados, lhes provocaram sofrimento e os levaram à separação.
  Trata-se de uma muito interessante reflexão sobre a incomunicabilidade, sobre os silêncios,  sobre os direitos de cada uma das pessoas que formam o casal (ainda que esses direitos possam parecer estranhos e absurdos) e sobre a realidade banal que pode esconder-se por detrás das aparências mais extravagantes.
 E se nos espantamos perante uma separação que ocorre, mesmo numa relação em que o amor ainda está vivo, comprendemos também que, em cada um daqueles seres, existia o desejo de conhecer outras pessoas, de saber como seria o amor com outras pessoas. No fundo, são também as limitações de um casamento que estão aqui representadas.
  O hotel em reconstrução pode significar uma reconstrução das situações vividas pelo casal para melhor as entenderem. Não implica que a relação se restabeleça.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Terramoto no Haiti - o despertador que acordou o mundo

(publico.pt)

  111 mil mortos, dois milhões de pessoas sem tecto, quatrocentas mil pessoas realojadas em acampamentos fora de Port-au-Prince! Números incontáveis de uma tragédia súbita!
  E as imagens? Mulheres, homens, crianças que se amontoam em estádios, em ruas, em praças, aguardam sacos de água, rações de comida, lavam-se e defecam em promiscuidade.
  Espantamo-nos com a violência, com os grupos organizados que irrompem com catanas, bastões, roubam, espancam, ferem, imunes ao sangue, ao sofrimento.
  No cenário, as pedras, o pó, os escombros ladeiam e invadem as ruas.
  Quem sabia que o Haiti era, antes do terramoto, um país de gangues mafiosos, organizados em Port-au-Prince por bairros e por ruas, com líderes e chefes supremos? Que os habitantes da capital, para realizar as suas compras diárias, tinham que contratar seguranças para não serem, de imediato, roubados e esfaqueados? Que as máfias se aproveitavam da miséria do povo para dominarem os bairros mais pobres pela violência e pelo medo? Que as redes de tráfico infantil actuavam impunemente?
 Pensávamos que o Haiti era apenas um país de praias paradisíacas, de mar, de calor...
 O terramoto foi o toque do despertador, um despertador bem sonoro e perturbador.
 Indignamo-nos agora com o facto de as crianças serem roubadas dos hospitais e das ruas e com os roubos e a violência de que são vítimas os desgraçados sobreviventes do terramoto. 
 Mas enojamo-nos sobretudo com pastores evangélicos que aparecem com protectoras asas de anjo para levarem crianças sabe-se lá para que inferno e com as máfias americanas, russas, tailandesas, etc., etc., que imaginamos aterrando diariamente, agora, sobre o terramoto do Haiti.  



terça-feira, 19 de janeiro de 2010

«O Laço Branco», de Michael Haneke e o microcosmos da perversidade


  O filme O Laço Branco, de Michael Haneke, é, pela focalização exaustiva das situações perversas - as conhecidas e incansavelmente tratadas nos estudos de Psicologia, na literatura, no cinema, etc., como o incesto, a violência familiar, a brutalidade dos castigos paternos, os preconceitos de uma educação religiosa conservadora, o servilismo feminino, a inveja resultante das desigualdades sociais, o preconceito da virgindade, a cumplicidade cruel dos grupos de adolescentes, e outras menos conhecidas como o crime organizado dos alunos de uma escola, as artes de simulação de que as crianças são capazes, o medo que uma jovem líder feminina pode inspirar -, uma amostragem verdadeiramente exemplar dos vícios e da  maldade humana. 
   E como toda a história se passa numa pequena aldeia, podemos considerar este filme um autêntico microcosmos da perversidade. Como as cobaias numa gaiola, assim a população desta aldeia, de horizontes limitados e estrangulada pelo preconceito, se vai destruindo.
  Penso que Michael Haneke consegue realizar uma obra perfeita. E a beleza de algumas imagens, como os campos de searas ou as extensões de neve, é também um cenário perfeito.
   Felizmente, o filme apresenta algumas cenas de pureza e de dignidade humana, como o amor entre o professor e a jovem perceptora, o rapazinho que interroga a irmã sobre o tema da morte ou o outro rapazinho que salva o pardalito e posteriormente o oferece ao pai.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Dois poemas de Joan Margarit

Empilhando lenha

O homem costuma recolher do bosque
os troncos caídos com a tempestade.
Empilha-os nas traseiras da casa.
De cada um recorda
o que o fez cair e onde o recolheu.
Nas noites frias, a contemplar as chamas,
vai queimando oque resta doque ama.


O vendedor de rosas

Solitário e furtivo, o homem do ramo
anda por locais nocturnos à procura de casais.
Encontrei-o nas ruas ao pé da Rambla
com umas rosas sem cheiro a rosas
numa noite que não tem cheiro a noite.
E perdi-me pelas traseiras da vida.
Uma mulher na sombra que não és tu
roubou-te os olhos e chora. A cidade
é uma exacta e monstruosa cópia.
Como se o Cupido já estivesse velho,
passa cuspindo o vendedor de rosas.
Enquanto se afasta penso: ao teu amor
não lhe perdoes nada. Nem o seu final.

 No epílogo, Joan Margarit explica o título do livro - Casa da Misericórdia -, dizendo que a poesia  é uma espécie de Casa da Misericórdia, uma vez que, segundo ele, «um poema   talvez sirva para ajudar a suportar a dor e as ausências».

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Gostam da Ana Moura? Eu gosto!

A poesia - a única arte à margem do entretenimento

(joanmargarit.ovni.org)

 
 O poeta catalão Joan Margarit esteve no programa Bairro Alto da RTP2 no dia 12 deste mês. Interessou-me a entrevista que deu quer pelo seu conceito de poesia quer pelas ideias que desenvolveu sobre o entretenimento, tão constante na sociedade em que vivemos.
 A entrevista está no video que integrei neste post. Vou, no entanto, salientar algumas das ideias diferentes que este poeta apresentou.
 Para ele, a poesia não é literatura. A poesia investiga a verdade, busca a verdade. Há uma zona da poesia que não é literatura. A poesia caracteriza-se pela concisão e pela exactidão - uma palavra a mais pode matar um poema. A poesia põe ordem onde está a desordem. O que interessa num poema é aquilo que é universal.
 Joan Margarit fala sobre o entretenimento. E usa esta palavra extremamente significativa - entretenimento. Andamos todos, de facto, entretidos nesta multiplicidade de espectáculos de toda a ordem que são organizados para nós, os que têm algum dinheiro, sede de cultura e tempo para a desfrutar. Mas, segundo este poeta, o entretenimento não muda as pessoas, as pessoas saiem do entretenimento tal como entraram. Com as suas confusões, os seus problemas, as suas angústias. A poesia, sim, muda as pessoas, transforma-as. A única arte que se mantém à margem do entretenimento é a poesia. E tão poeta é o que lê um poema, como o que o escreve.


domingo, 10 de janeiro de 2010

Felizmente uma «Estrela Cintilante» no cinema de 2010



  Ainda bem que Jane Campion continua a fazer filmes em que as relações humanas se desenrolam com profundidade, em que as personagens se transformam e crescem ao mesmo tempo que as relações afectivas, em que a criatividade dos actos de amor tem significado e repercussão nessas relações.
 Porque é que o que se considera modernidade no cinema tem que estar apenas nos novos camerons, ou nos novos coppolas ou nos novos tim burtons? 
 Esta á a história de uma paixão adolescente, em que a poesia é o elo de sedução entre os amantes. A aprendizagem e a leitura da poesia vai motivando os encontros e tecendo a rede que sustenta os sentimentos. E a paixão que se ergue é inabalável e consequente.
 O filme baseia-se na relação amorosa (verídica) entre o poeta romântico John Keats e a sua jovem vizinha Fanny Brawn e prova que uma grande história de amor é e será sempre actual. 
 Quem diz que este filme «já foi feito mil vezes» não tem razão. Ou, como disse a Fanny Ardant quando esteve em Lisboa, todos os filmes já foram feitos mil vezes.  

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O tempo dos avatares



 Chegou o tempo dos avatares. Os avatares já existiam nos jogos de computador. No cinema, os avatares surgem no filme 2012  e agora, em pleno, no filme Avatar, de James Cameron.
 Não vou falar do filme que vi no dia de ano novo. Interessa-me mais reflectir um pouco sobre este fenómeno que começa a inundar os nossos olhos e os espíritos de crianças e adolescentes com toda a certeza.
  Segundo o dicionário de Houaiss, um avatar é, na crença hinduísta, um ser divino que desce à terra, em forma materializada (humana ou animal). A palavra vem do sâncrito - avatara que significava «descida do Céu à Terra».
  Será que os seres humanos estão a convencer-se de que as suas potencialidades podem assemelhar-se às de deuses? Que, com os conhecimentos no campo da ciência e da tecnologia, poderão conseguir a imortalidade ( no filme, o espírito de um ser humano passa para o corpo de um avatar e assim ultrapassa a morte e continua a viver)? Que poderão mudar-se para outros planetas e, de planeta em planeta, dominar o universo? Que passarão a ser os deuses e senhores do universo?
  O medo da destruição do planeta Terra pode ter conduzido a Humanidade para estas quimeras. As guerras, as pandemias, os vírus, as alterações climáticas, (os grandes males profetizados por Nostradamus), estão a aterrar os homens! E as alternativas não se fazem esperar!
  E não foi o homem feito à imagem e semelhança de Deus, de acordo com a religião católica? No entanto, o que significava o mito da Torre de Babel? Ao homem está proibido ousar ser igual a Deus. Conseguirá o homem destruir esse mito?  

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

«No teu deserto» - um diário das arábias


 No teu deserto, o último livro de Miguel Sousa Tavares, é, como o subtítulo diz, quase um romance. Quase um romance porque se desenrola como um diário de uma viagem feita ao deserto do Sahara em 1987, narrando os acontecimentos diários desde a partida de Lisboa (de Belém como os antigos navegadores), continuando com o embarque em Alicante, a viagem de barco até Argel no suposto Ciudad de Oran, as peripécias à chegada a Argel, o percurso através do deserto num jipe UMM Alter II, o reembarque em direcção a Gibraltar e terminando no regresso a Lisboa.
 Li este livro porque também fiz uma viagem de jipe pelo deserto do Sahara, no seguimento desta viagem de que fala Sousa Tavares e de outras que ele fez e que prepararam as viagens seguintes organizadas pela revista Grande Reportagem. E sabia da morte da guia de viagens que penso ser a personagem que acompanha o narrador e a quem Sousa Tavares dedica o livro. 
 Há momentos muito interessantes nesta obra: a corrida louca no jipe de Málaga (terra de Picasso) até Alicante, as negociações com os árabes (o bakshish) e as suas trafulhices, a tempestade de areia, o encontro com os tuaregues junto ao poço (também parei junto a este poço) e alguns momentos de ternura e companheirismo com a Cláudia (o leitor apercebe-se de que aconteceu «quase um romance»).
  Gostei muito desta frase: «Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer.» 

 
   Este foi o poço que encontrámos na viagem que fiz pelo deserto do Sahara, em Abril de 1995.